São os utilizadores dos novos meios de transportes individuais e privados que fazem lobby para a criação de infraestruturas públicas para que, primeiro a bicicleta e mais tarde o carro, se possam conduzir.
Se a bicicleta e os seus utilizadores foram os primeiros impulsionadores de uma rede de estradas com bons pavimentos, o carro torna-se mais impositivo na forma como ocupa, ao longo do tempo, o espaço urbano. A escala humana desaparece tanto no pouco tempo que se leva a percorrer dezenas de quilómetros num transporte privado, como na dimensão que as estradas — e esta nova máquina — ocupa.
“A certa altura, a nossa maneira de ver as ruas mudou. Os EUA foram o primeiro país onde apareceram passadeiras, regras a impor como se atravessa a rua, e parques infantis para as crianças não brincarem por toda a rua, mas brincarem segregadas. A própria visão que temos do espaço público mudou e ficou condicionada para dar primazia ao automóvel”. Bernardo Campos Pereira, arquiteto e e especialista em planeamento e políticas de mobilidade urbana.
É com o início do século XX que esta transição começa a ser preparada. Em cidades como Nova Iorque, o apelo pelo automóvel era simples de entender. Era este o veículo que prometia resolver todos os problemas causados pelos carros puxados a cavalos: mau-cheiros e poluição, barulho, congestionamentos e acidentes. Ironicamente, consequências com que as grandes cidades com elevado tráfego automóvel lidam atualmente, e a esse problema acrescentou-se o perigo rodoviário causado pelas elevadas velocidades do automóvel.
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A certa altura, a nossa maneira de ver as ruas mudou. Os EUA foram o primeiro país onde apareceram passadeiras, parques infantis para as crianças não brincarem na sua, mas brincarem segregadas. A própria visão que temos do espaço público mudou para dar primazia ao automóvel."
Bernardo Campos Pereira, Arquiteto e Investigador na área da mobilidade
“A substituição do carro pelo carro elétrico só vai resolver o problema da poluição local, não vai resolver todas as outras externalidades”, garante Bernardo Campos Pereira. A tomada do espaço público pelo carro começa, em todo o mundo, no início do século XX, quando apareceu — e se comercializam também — carros elétricos.
Em 1894 havia inclusive, em Philadelphia, nos Estados Unidos, um serviço de táxi em carro elétrico, o Electrobat, no entanto, a venda de carros com motor de explosão e elétricos vivia numa fortíssima concorrência e, com o passar dos anos, os veículos elétricos ganharam, nos Estados Unidos, uma fama bastante depreciativa: eram vistos como carros para mulheres.
Na primeira década do século XX, os fabricantes aceitaram essa associação e focaram-se no público feminino que, longe da emancipação, era muito menor. Os projetos para carros elétricos económicos e comercializáveis foram, por isto, a pouco e pouco sendo abandonados — como aconteceu com a parceria de Henry Ford e Thomas Edison. O automóvel a gasolina vingou e moldou as paisagens na América do Norte na Europa.
“O automóvel tomou conta das cidades por todo o mundo no século XX. Começou a ditar as regras de ocupação do espaço público e dos orçamentos municipais nos Estados Unidos: entre 1920 e 1930 houve uma grande mudança nos Estados Unidos — foi sendo preparada desde o início do século XX. O conceito de passeio lateralizado começa a aparecer, as passadeiras para os peões só puderem passar em determinados sítios. Há fotografias do Largo do Rato, em Lisboa, de 1904 com crianças a jogarem ao berlinde. Hoje em dia o Largo do Rato é uma zona de passagem, não tem a vida própria que podia ter, estando no centro”, nota Bernardo Campos Pereira.
Pelos anos 1930, a bicicleta estava democratizada nas grandes cidades e iniciou, na Europa e nos Estados Unidos o seu declínio e, num atraso em relação aos restantes países ocidentais, em Portugal, ela mantém-se como meio preferido das zonas rurais e industriais até por volta de 1960. A ligação entre as cidades do Porto, Viana do Castelo e de Lisboa e as respetivas zonas industriais é feita pelos trabalhadores, todos os dias, de bicicleta. No meio rural do litoral centro, do Algarve e do Alentejo, a bicicleta é um meio de transporte fundamental para percorrer distâncias maiores em meados do Século XX.
“O carro começa a tomar conta das elites financeiras e económicas do país. Em Portugal, cria-se o estigma da bicicleta associado à pobreza. Em outros países, aconteceu um pouco antes, no pós-Guerra”, analisa Bernardo Campos Pereira lembrando que a ligação do uso da bicicleta a classes pobres ainda acontece em países como o México, onde as populações pobres são apelidadas de pueblo bicicletero.
É nos anos 1970, com as crises do petróleo, que a Europa começa a pôr em perspectiva todo o investimento que tinha colocado nos motores de combustão interna e a dependência deste meio de transporte. Surge, por isso, um grande renascimento do uso da bicicleta no centro da Europa Ocidental. Nos Países Baixos, fecham-se autoestradas ao fim de semana para que as famílias possam passear a pé e de bicicleta — além de surgirem movimentos cívicos contra os atropelamentos e destruição das ruas nas cidades holandesas “Stop de Kindermoord” (Pare o infanticídio), entre outros movimentos por toda a Europa Ocidental e a América do Norte, preocupados com a proteção do património e do meio ambiente.
Por Portugal, com a revolução de 1974, o país encontra-se em contra-ciclo: “A partir do 25 de abril há um conceito de emancipação onde as pessoas pensam que têm o direito ao automóvel. 1974 e 75 foram os anos em que houve o maior crescimento do uso do automóvel, e a maior sinistralidade nas estradas em Portugal. A própria indústria muda a publicidade, que era antes bastante elitista, e passa a ser um modo de mobilidade para o povo”, conta Bernardo Campos Pires, notando que o investimento das famílias no carro se verifica até hoje. Só recentemente — nos últimos cinco anos — se pode falar numa retoma do uso da bicicleta em Portugal, graças a políticas públicas de algumas cidades, como Lisboa, em particular entre 2015/16 e 2021, para a criar condições à existência das bicicletas na cidade.
O que acontece com o ciclismo nas cidades de todo o mundo hoje é o mesmo fenómeno que o século XX viu acontecer com o carro: a indução da procura, isto é, quando construímos uma estrada, ela gera mais tráfego. Quando temos tráfego, investimos mais nas infraestruturas. Em inglês, o famoso “build it and they’ll come”. Quantos carros atravessavam o Rio Tejo entre Alcântara e Almada antes da Ponte 25 de Abril?
O grande investimento nas redes rodoviárias do centro da Europa fez-se com o plano Marshall no pós-guerra e, para Bernardo Campos Pereira, a entrada de Portugal e Espanha na CEE resultou na aplicação de uma metamorfose do plano Marshall realizada com fundos europeus em vez de americanos — e que mais recentemente se viu novamente a ser executado nos países da Europa de Leste.
Nos dois países ibéricos, a ferrovia não se desenvolveu tanto neste período — embora se tenha apostado muito na alta velocidade em Espanha, a ferrovia regional sofreu imenso. Entretanto, cidades espanholas, como Barcelona, Pamplona, Pontevedra, San Sebastián, Valhadolid, Vitoria ou Valência, conseguiram evoluir no sentido de mais vias pedonais e dar um papel importante à bicicleta (incluindo através da ciclologística), graças a uma sociedade civil forte, próxima da governação local e regional. Entretanto, o investimento nas infraestruturas rodoviárias também foi de tal forma “massivo que só parou em 2011, com o resgate”.
“No ‘Country Report’ sobre Portugal que seguiu o resgate, a OCDE avisou da ‘oversized road infrastructure’ de Portugal, e que o país tem um problema económico, ambiental, sanitário e social resultante do uso excessivo do automóvel, em especial nas grande cidades. Em parte, foi um resgate causado pela dependência no automóvel e pela infraestrutura rodoviária insustentável que este exige. Os programas Polis incluem parques de estacionamento caríssimos: cada parque de estacionamento custa entre 10 e 20 mil euros por lugar de automóvel. São dinheiros públicos usados para financiar o automóvel porque sem ir buscar fortes financiamentos públicos e subsídios, o automóvel não funciona. Precisa de estradas e estacionamentos. O carro é um veículo altamente subsidiado”, considera Bernardo Campos Pereira
Este momento é, em particular nos países desenvolvidos, um momento de definição do que vai ser a mobilidade nos próximos anos. Longe de desaparecer, o carro a combustão interna prepara-se para ser substituído pelo carro elétrico e procura o seu espaço — cada vez mais arredado de centros urbanos como Paris, Barcelona, Milão ou Amesterdão.
É nos meios rurais e nos centros das cidades que a bicicleta mais é usada neste continente. Os números Europeus são anunciadores de uma retoma em força da bicicleta e dos espaços verdes nas cidades, em detrimento do alcatrão.