As redes elétricas foram o alicerce dos sistemas elétricos e continuarão a ser a espinha dorsal de um mundo movido por energias renováveis.
Faraday, Tesla e Edison entram num bar no século XXI e olham para os desenvolvimentos das redes elétricas nos últimos dois séculos… Não conseguem evitar sentir alguma desilusão ao perceber que os sistemas elétricos e as arquiteturas de redes não são tão diferentes do que haviam inventado*. Isto, claro, é uma grande simplificação da realidade, dado que o digital trouxe uma enorme transformação aos sistemas elétricos… mas, como a Física não mudou, os princípios básicos do eletromagnetismo, produção de eletricidade, transmissão e distribuição em Corrente Alternada (AC) ou Contínua (DC) permanecem. Como resultado, a arquitetura das redes, com a eletricidade a fluir da geração para o consumo através de alta, média e baixa tensão, alavancada pelos transformadores**, ainda é (e continua a ser) o paradigma.
Embora a Corrente Contínua (DC) tenha começado (com Edison) a ser usada em aplicações domésticas, a Corrente Alternada (AC) tornou-se mais tarde, e ainda é, o caso de referência para transmissão e distribuição de eletricidade, com algumas exceções, como a utilização de DC em níveis de tensão muito elevados para longas distâncias, tanto em terra como no mar.
Mas muitas coisas mudaram em mais de 200 anos. A sustentabilidade/sobrevivência e os fatores económicos impulsionaram uma revolução no sistema elétrico – tanto na geração como na procura. Evoluímos de um sistema de geração altamente centralizado para um sistema distribuído, de combustíveis fósseis para renováveis, com a energia solar quase a tornar-se omnipresente – um painel fotovoltaico em cada telhado voltado a sul. Também do lado da procura, muitas coisas mudaram: de uma frota global de veículos elétricos já enorme e crescente, ao armazenamento de energia ou cargas flexíveis. Mais recentemente, nomeadamente com a explosão da IA, os centros de dados tornaram-se alguns dos maiores consumidores de eletricidade. Simultaneamente, a indústria, especialmente o calor, precisa de ser descarbonizada – e está, em grande medida, a ser eletrificada.
Bem, tudo isto contribui para um papel cada vez mais importante das redes – que continuam a ser a espinha dorsal do sistema elétrico/energético. As redes não podem ser o gargalo para o crescimento de um sistema movido por renováveis… diz a Agência Internacional de Energia, tendo sido recentemente reafirmado na COP29, em Baku – para atingir os objetivos energéticos da COP28, o mundo precisa construir ou modernizar 25 milhões de km de redes elétricas até 2030 (e 80 milhões de km até 2040).
Mas a questão é como. Há muitos fatores, vários deles habilitados por tecnologia… mas não se trata apenas de tecnologia. Aqui estão algumas pistas…
Estamos a construir redes tão rápido (e à escala) quanto podemos? Podemos aproveitar a automação e a IA para desafiar e simplificar processos de construção demorados e que consomem muitos recursos? O mesmo se aplicaria à manutenção de ativos existentes.
Se enfrentamos escassez de mão de obra e materiais essenciais, como transformadores, não deveríamos explorar ao máximo o potencial da eletrónica de potência? Com benefícios adicionais na flexibilidade necessária.
Falando de flexibilidade… como podemos aproveitar as baterias existentes (e são muitas) nos veículos elétricos e também em aplicações estacionárias, agregar a flexibilidade inerente e usá-la a favor das nossas redes, quando necessário?
E quanto ao DC? Como construímos o nosso sistema elétrico global com base no AC, agora enfrentamos um problema, pois grande parte da geração e da procura é DC… de facto, estamos numa via menos eficiente devido à herança histórica e porque não se pode mudar um sistema inteiro de repente… mas não deveríamos começar a explorar, partindo do início – os casos de uso mais favoráveis?
Digital, OT/IoT e dados são também grandes áreas com um impacto potencial enorme em infraestruturas como as redes elétricas. Desde sensores por todo o lado até decisões baseadas em IA em operações, planeamento, etc.
No planeamento, também há uma infinidade de oportunidades: desde ferramentas baseadas em IA até a uma nova filosofia de co-desenvolvimento de redes, geração renovável e consumidores específicos de energia (nomeadamente centros de dados ou grandes indústrias intensivas em energia).
Chegamos às licenças e ao emaranhado de bloqueios ao investimento. Muito pode ser feito para que os governos entendam que a regulação para o presente e futuro distribuído deve ser diferente do passado centralizado. O trade-off é óbvio: os governos e reguladores precisam de “desapegar-se” e aceitar algum risco e falta de controlo. Os verbos certos aqui são “fazer”, “testar” e “adaptar”.
As redes foram, são e continuarão a ser a ponte entre a geração e a procura, e desafiar o paradigma existente é a única forma de garantir o nosso futuro movido por renováveis. Para que, quando Faraday, Tesla e Edison regressem ao bar… fiquem boquiabertos ao segurar o “telemóvel” das redes elétricas nas suas mãos.
* Citando António Vidigal, que costumava dizer que, caso Marconi e Edison “regressassem à Terra”, Marconi ficaria espantado com as mudanças/disrupções nas telecomunicações, enquanto Edison encontraria as redes elétricas ainda algo semelhantes ao que tinha concebido.
** Gaulard e Gibbs foram os primeiros a demonstrar um design prático de transformador no final do século XIX, mas muitos outros depois o refinaram.